No final da rua de Caio só haviam duas casas: a sua própria e a do Minotauro. Toda a vizinhança conhecia a besta. Ele quase nunca saía de casa, e quando alguém o via, estava sempre bufando por aí. Ele era alto, imponente, estava sempre nervoso e parecia estar a um acesso de raiva de matar alguém. Apesar disso, todos na vizinhança tinham que tolerá-lo, pois apesar de ser um bárbaro e um incômodo, ele não havia feito nada de errado ainda.
Muitas crianças vinham à casa do menino brincar com ele, pois havia lá um grande quintal nos fundos com um largo gramado, que com um pouco de imaginação e alguns gravetos logo se tornava um campinho de futebol. O único porém estava na cerca, que era muito baixa e só naquela semana, já tinha deixado passar três bolas.. Sempre que uma bola voava para o outro lado, as crianças entravam em um estranho silêncio que normalmente não se ouve quando crianças estão brincando. Os amigos de Caio iam embora discretamente e chateados, pois mais uma bola novinha de alguém da turma havia se perdido para sempre.
Não demorou muito tempo e seus amigos pararam de vir. Arrumaram um terreno baldio para jogar, que estava longe para ele e ele mal tinha tempo de brincar depois da escola e antes do toque de recolher de sua mãe. Ele pediu uma bola nova para seu pai, que lhe respondeu apenas que “deveria ter mais cuidado com suas coisas!”. Em seguida, implorou ao pai que fosse pedir ao Minotauro que devolvesse as bolas perdidas, mas recebeu um olhar de medo e irritação. Foi mais do que resposta suficiente.
Sem alternativa e decidido, Caio elaborou um plano. À noite, depois que seus pais e o Minotauro estivessem dormindo, iria armado com sua pequena lanterna atravessar a cerca e buscar algumas bolas no quintal vizinho. Já imaginava todos os seus amigos lhe dando tapas nas costas, admirando sua coragem e agradecendo-o. Essa era a parte fácil, a difícil era realmente seguir com o plano e enfrentar o medo.
Preparou-se com o canivete que tinha ganhado no último natal e a lanterna de um de seus brinquedos, pegou as luvas de jardinagem da mãe e desceu as escadas passo a passo, para não acordar os pais. Saiu pela porta dos fundos com a lanterna em mãos, e foi diretamente onde sabia que a cerca de madeira tinha algumas tábuas soltas. Empurrou elas para o lado e atravessou até a cerca viva. Era difícil abrir caminho, teve que fazê-lo pacientemente com o canivete, e empurrando os galhos do negligenciado sansão do campo que acompanhava a cerca. Foi quando ouviu um barulho. Caio imediatamente gelou, e paralisado ouviu um som vindo do outro lado. Alguém vinha de lá.
Ele viu um homem mascarado atravessando o quintal em direção à porta dos fundos. Caio viu uma arma na sua mão. Então as luzes se acenderam, holofotes iluminaram todo o quintal, revelando uma enorme quantidade de plantas: orquídeas, lírios, todo tipo de arbustos e trepadeiras, e no centro, uma rosa-de-jardim que era do tamanho do Minotauro. Ela se destacava não só pelo seu tamanho imponente e por ocupar o espaço central e privilegiado, mas também porque era a única planta ali que parecia estar bem cuidada, podada e com o mato desbastado ao seu redor.
Com as luzes acesas, Caio ouviu passos pesados vindo da casa e em seguida, um estrondo alto como um trovão. Instintivamente, fechou os olhos e tapou os ouvidos, quando os abriu novamente, se surpreendeu ao ver que o Minotauro erguia o homem pelo pescoço com uma única mão. Antes que o invasor pudesse erguer a arma em sua mão e apontá-la para a besta, o menino apenas ouviu um estalo, e o corpo do homem sendo arremessado para longe da roseira.
Ainda paralisado, Caio queria correr de volta para casa. Sua respiração estava acelerada, seu coração na boca e estava aterrorizado, por um instante teve a impressão de que o Minotauro havia olhado em sua direção, mas a besta logo retornou para dentro de casa. Respirando aliviado, o menino correu de volta para sua cama, mas claro, não conseguiu dormir. Ouviu o barulho da rua quando as viaturas da polícia chegaram e conversaram com o Minotauro, viu quando carregaram um saco preto para fora, mas depois de conversar com eles, a besta voltou para sua casa e não foi mais importunada.
Muitos anos se passaram e os pais de Caio faleceram. Ele já tinha sua própria família, um filho da mesma idade de seus tempos de menino e de jogar futebol. Assim como o pai, ele gostava do esporte. Caio conversou com sua esposa e resolveram sair de seu apartamento para morar na antiga casa dos seus pais, ele acreditava que seria bom ter mais espaço para o seu filho brincar.
Depois de tantos anos, ele não imaginava que voltaria a ser vizinho do Minotauro. Porém, no dia de sua mudança viu um vulto passando nas janelas naquele dia. A besta ainda estava lá. Menos de uma semana depois de estabelecidos, Caio havia cuidado do quintal dos fundos da casa e transformou-o em um apropriado campinho de futebol. Seu filho chamou alguns amigos da escola para estrear o presente do pai e não demorou muito tempo até que uma bola caísse do outro lado da cerca.
Os amigos do filho, acostumados com a vizinhança, ficaram com o semblante baixo e se dirigindo para outra brincadeira, mas seu filho, inocente quanto ao vizinho, pediu ao pai que buscasse a bola para que pudessem continuar a jogar. Caio lembrou da reação de seu pai quando fez o mesmo pedido anos atrás. Engoliu a seco e pediu ao filho para esperar.
Sua esposa, que conhecia as histórias de infância do marido, disse a ele para levar um pouco da torta que havia feito e oferecer ao vizinho. “Como boas vindas e uma ponte para uma boa convivência”. Caio achava que precisaria mais do que torta para criar uma boa convivência com o Minotauro, mas disse que não faria mal. Era melhor do que chegar de mãos vazias e já pedindo algo.
Quando bateu na porta, o medo alcançava suas canelas, mas tentava manter-se firme. Prometeu para si mesmo que seria firme, estava ali por seu filho e cumpriria sua missão. A resposta veio sem que a porta se abrisse:
“O que é?” – disse o Minotauro rosnando. “Senhor Minotauro, eu trouxe uma torta de boas vindas para o senhor”. Caio suava fria mas estava internamente satisfeito por não ter gaguejado. “O que você quer é que eu devolva a bola para os moleques”, dizia a voz ameaçadora. “Sim senhor, isso também. Mas pareceu mal educado chegar fazendo pedidos sem oferecer algo em troca”, disse Caio tentando manter um tom natural.
O Minotauro então bufou e abriu a porta. “Ao menos você é franco e direto, vá lá no quintal procurar a bola”. Antes de entrar, Caio ofereceu a travessa com a torta e o vizinho a pegou. Enquanto passava pela casa, notou que ela estava quase completamente vazia, sem móveis, decorações ou mesmo televisão, livros ou quaisquer tipo de utensílios. Na sua cozinha, havia uma geladeira e um microondas, mas não havia mesa, cadeiras ou mesmo um fogão.
O quintal parecia um lote baldio que havia sido usado pela vizinhança como lixão. O antigo jardim estava soterrado em algum lugar por ali, estava ressecado, misturado com entulho de construção e todo tipo de descarte. Caio notou a roseira ao centro e em volta dela havia ainda um sinal precário de organização e limpeza. Se recordou imediatamente do corpo suspenso pelas mãos do Minotauro. Fechou os olhos, balançou a cabeça, e afastou a memória. Se o Minotauro percebeu algo, não demonstrou. Perto do canteiro da roseira, estava a bola. “Espero que ele não pense que a bola a acertou, porque aparentemente a roseira é a única coisa com a qual ele se importa.” Caio para não se demorar, pegou a bola, agradeceu ao Minotauro e foi embora para casa.
Sentiu-se bem por ter enfrentado o medo e visto a felicidade do filho, mas disse à esposa que ia mandar por uma tela no quintal, para evitar passar pela experiência novamente. No dia seguinte, foi surpreendido com alguém batendo na porta em um horário inconvenientemente cedo. Afinal, era domingo. O Minotauro veio devolver a travessa, “obrigado, estava bom”, deu as costas e foi embora. Vê-lo assim, exposto e só, fora de seu covil, mexeu com algo dentro de Caio.
“Espere Sr. Minotauro! Eu vi que seu quintal está precisando de um trato. Você quer uma mão?”, disse inesperadamente. “Eu não tenho dinheiro para pagar”, respondeu a besta casualmente e dando de ombros. “Eu entendo”, respondeu Caio pensativo. “Vamos fazer um combinado, minha esposa é florista. Eu te ajudo a cuidar do seu quintal, e você nos dá algumas flores para que minha esposa possa revender, parece justo?” , o sorriso saíra espontâneo assim como a proposição. “Por quê você faria isso?” retrucou, o desconfiado vizinho. “É um bom negócio”, de fato era, pensou Caio. E estava suspeitando que seu vizinho não era tão ruim como o pintavam.
“Ninguém faz negócio comigo. Eu sou um Minotauro, um bárbaro, um ser de fúria e bestialidade.” A resposta soou até um pouco melancólica para Caio. “Uma vez que um cavalheiro se estabelece entre os bárbaros, que selvageria ainda existiria?” disse Caio lembrando de um dos ensinamentos de Confúcio. O Minotauro pareceu ficar pensativo, refletindo sobre o que aquilo queria dizer. Por fim acenou concordando, mas acrescentou “tudo bem, mas só eu encosto na roseira.”
Caio ficou estranhamente animado e sua esposa surpresa quando contou para ela o acordo com o Minotauro, mas ela o apoiou mesmo assim. Nos próximos meses, os dois trabalharam juntos quase todos os fins de semana, limpando o quintal, crescendo flores no jardim, cuidando da casa. O dinheiro foi suficiente para que o Minotauro comprasse alguns móveis, incluindo um fogão, ao qual logo pôs em bom uso aprendendo a cozinhar. Até mesmo enviou uma torta à esposa de Caio como retribuição. Somente a roseira permanecia um mistério que apenas o seu dono podia tocar. Um dia,juntando coragem o suficiente, resolveu perguntar.
“Minotauro, nós somos amigos, certo?”. O Minotauro olhou avaliando-o. “Eu acho. Pelo menos você é o mais próximo que já cheguei de ter.” Caio resolveu se arriscar: “Por que a roseira é tão importante para você?” pela primeira vez em todo aquele tempo, o Minotauro baixou a cabeça. “É a única coisa que minha mãe deixou para mim. Nós a plantamos juntos e é a única memória que tenho dela. Depois disso, nunca mais a vi. E meu pai... digamos que eu sou uma besta assim como ele.” Depois de um tempo refletindo, o Minotauro olhou para o céu, e perguntou: “Amigo, posso lhe fazer um pedido?” Claro, disse Caio. “Você me ajuda a cuidar da roseira se eu não puder fazê-lo?” Caio assentiu. “Vamos cuidar dela juntos.”
Mais alguns meses se passaram e o jardim dos fundos cresceu ao ponto de se tornar uma atração na região. Todos queriam ver o jardim do Minotauro, que se tornou um exímio jardineiro. A atração principal era a roseira, que estava esbelta e constantemente florida. O Minotauro permitia visitas para que pudessem escolher as flores que queriam comprar, embora alguns clientes insistentemente pediam para levar uma rosa, o Minotauro rapidamente fechava sua cara e dizia que não estava à venda. Na verdade, chegou a colocar uma placa na frente da sua casa e na entrada do jardim para reforçar o recado.
As notícias sobre a vizinhança e o jardim do Minotauro viajavam rápido e um homem muito rico chegou na cidade apenas para ir visitar o local e fazer uma proposta para comprar rosas. Ele foi tão insistente e fez tantas propostas, que cada vez que ele aumentava o valor, o Minotauro se irritava mais. Ele chegou a voltar a bufar, como não fazia há muito tempo nos seus antigos acessos de raiva. Expulsou o homem dali e disse para ele nunca mais retornar.
Era tarde da noite quando Caio ouviu um barulho. Alguém parecia ter entrado em seu quintal, ele pegou uma lanterna e desceu para averiguar o que havia acontecido. Viu apenas de relance uma perna saltando de sua cerca para o jardim do vizinho. Depois de ter presenciado o que aconteceu durante o dia, intuiu o que era. Se aquele homem ambicioso fosse pego pelo Minotauro tentando roubar uma rosa… não queria nem imaginar.
Correu atrás do homem e foi até a cerca. Ele e o Minotauro eram tão amigos que havia uma passagem entre os dois lugares, não distante daquele mesmo lugar onde havia se escondido quando criança. Quando chegou ao jardim, os holofotes já estavam acesos, o belo jardim florido todo iluminado. No centro, ao lado da roseira, estava o homem erguido por um dos braços do Minotauro que o segurava pelo pescoço, e nas mãos do homem, estavam algumas rosas. Caio viu o rosto do Minotauro e seu estado de fúria quando este olhou para ele, ele instintivamente fechou os olhos e baixou a cabeça, esperando ouvir o mesmo estalo seco de anos atrás.
Então, ouviu um longo bufar e... “você aceita um pedaço de torta?”
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